
PERSONAGEM NÃO BINÁRIA DE "SEX EDUCATION" REVELA A IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE
Terceira temporada da produção original da Netflix apresenta a personagem Cal Bowman, que se identifica como "não binária'' e abre espaço para um debate sobre representatividade e protagonismo nas telas dos grandes serviços de streaming.
Por Vitor Marques

Imagem: Reprodução/Netflix
No dia 17 de setembro, "Sex Education", um dos maiores fenômenos recentes da cultura pop, lançou sua terceira temporada.
Assim como as duas primeiras partes, a nova temporada apresentou oito episódios em que seguimos acompanhando a trajetória dos protagonistas Otis, Maeve, Eric e Jean na fictícia cidade inglesa de Moordale.
Contudo, novos rostos surgiram nesta terceira parte, sendo um deles o de Cal Bowman. Interpretada pela também não-binária Dua Saleh (aliás, este é o seu primeiro trabalho como atriz), a personagem apresenta atitudes que despertam questionamentos até então deixados de lado.
Negra, não binária e skatista, Cal reúne alguns atributos que facilmente a encaixam em uma minoria, não só a do mundo real como também a de produções televisivas. Afinal de contas, você se lembra de alguma outra série mainstream introduzindo uma personagem como essa?
Apesar disso, sua aparição em uma série tão conhecida pode gerar bons frutos. Pelo menos, é isso que pensa Charlie Gomes do Nascimento, de 22 anos.
Não binária, estudante do 4° semestre de Administração pela faculdade Cruzeiro do Sul e "professore" de inglês, Charlie chegou à conclusão acerca de seu gênero por volta dos seus dezesseis anos:
"Nunca me senti 100% confortável quando precisava afirmar minha identidade enquanto 'mulher' ou 'menina'. Por um tempo, até pensei que pudesse ser um homem trans, pois nem sabia da possibilidade de ser não 'binárie'. Ainda assim, ser 'menino' ou 'homem' também não se encaixava totalmente".
"Perguntade" sobre a relevância de uma personagem não binária em uma série mundialmente famosa como "Sex Education", Charlie demonstrou empolgação:

"A relevância e influência é enorme! (...) Uma série tão famosa mostrar que essa identidade existe é simplesmente incrível! Isso pode fazer com que as pessoas se identifiquem com a personagem e repensem o seu gênero".
Apesar disso, Charlie também se mostra realista em relação ao tempo que ainda falta para que haja um tratamento igualitário entre as pessoas não binárias e as consideradas cisgêneras (cujo gênero corresponde ao atribuído no nascimento):
"Não tenho a mínima noção do tempo que isso vai levar, mas pela ignorância e preconceito das pessoas, não sei se estarei 'vive' até lá para ver".
Imagem: Charlie Gomes/WhatsApp
Dificuldades e privilégios
De fato, a igualdade no tratamento entre não binários e cisgêneros ainda é bem distante. Tanto que aqueles que não se identificam com o gênero masculino e com o gênero feminino se deparam com situações bem inoportunas. Dentre elas, duas merecem destaque:
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A dificuldade das pessoas em geral na utilização dos pronomes corretos;
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Banheiros destinados apenas para homens e mulheres.
Em relação ao primeiro item, Charlie revelou a dificuldade das pessoas em entender que “elu” não é uma mulher cisgênera: "Em todo lugar que chego, eu sempre preciso reforçar que não sou quem elas pensam que eu sou".
Em relação ao primeiro item, Charlie revelou a dificuldade das pessoas em entender que “elu” não é uma mulher cisgênera: "Em todo lugar que chego, eu sempre preciso reforçar que não sou quem elas pensam que eu sou".
Já em relação ao segundo item, a "entrevistade" demonstrou um pouco mais de humor: "Eu gostaria muito que houvesse um banheiro não binário, para que eu pudesse ver pessoas como eu. Mas infelizmente, ter um banheiro com a própria identidade ainda é um privilégio 'cis'", completou Charlie aos risos.
Apesar das polêmicas, avanços acontecem
Por mais que Charlie diga que ainda não tem uma noção de quando haverá uma igualdade entre os diferentes tipos de gêneros, certas notícias podem indicar que isso está mais próximo do que parece.
Em uma publicação no Instagram realizada no dia 02 de outubro, a Folha de S. Paulo revelou que a TV e os livros começariam a adotar linguagem neutra com o uso de "amigues", "todes", "elu" e "ile".
Isso, entretanto, gerou polêmicas, visto que a maioria dos comentários sobre a notícia se mostravam contrários à atitude:
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"Eu acho isso uma forçada de barra";
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"E nada de chegar o fim do mundo...";
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"Aurélio deve tá se remoendo";
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"Isso é um crime contra a literatura brasileira";
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"Coitada da língua portuguesa, até ela está sendo assassinada agora".
O último comentário, inclusive, foi feito por uma famosa figura do entretenimento brasileiro. Trata-se do apresentador de televisão Ratinho, que comanda um programa diário no SBT há mais de vinte anos.
Tal revolta dos internautas, contudo, já era esperada por Charlie, que quando "perguntade" a respeito, foi "incisive":
"Eu enxergo esses fatos como pura transfobia, pois tenho certeza de que essas pessoas não ficaram tão incomodadas quando "farmácia" deixou de ser escrita com "ph", ou mesmo quando a trema deixou de ser usada na palavra "linguiça". Então, para mim, isso só reflete o quanto a sociedade é transfóbica e se recusa a respeitar as pessoas".
O que esperar, então, para o futuro?
Considerando todas as informações adquiridas e comentários lidos, a presença de uma personagem não binária em uma produção de grande reconhecimento se mostra ainda mais necessária, visto que ela pode gerar um possível efeito normalizador, mesmo que de forma gradativa.
Comentários negativos em uma publicação como a da Folha de S. Paulo também só evidenciam o quanto este tema ainda deve ser debatido e discutido, dentro de todos os seus limites e especificidades.
As pessoas não binárias continuarão existindo e se descobrindo, mesmo que alguns se oponham a este movimento. E para o futuro, cabe ainda destacar uma última frase de Charlie, que também vale muito para o momento atual:
"A gente quer se ver nos filmes, nas séries e produções existentes porque queremos sentir que somos reais para as outras pessoas, e que podemos ter o nosso próprio protagonismo".
Cal Bowman, em "Sex Education", já representa este protagonismo. E tal presença pode abrir portas para a criação de muitos outros personagens que se identifiquem desta forma.

Adolescente segura cartaz com os dizeres: "Adolescentes não-binários existem, e nós temos importância". (Imagem: ZUMA Press/Alamy)
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Caso também queira acompanhar Charlie nas redes sociais, este é o seu Instagram: @fluidcharliee